O doente mental pode ser preso?

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Esse é um tema cheio de complicações terminológicas e jurídicas. Mas respondendo objetivamente à pergunta, não. Quem apresenta transtorno mental de um certo grau, em certas circunstâncias, não entra na regra geral do processo penal ou da pena de prisão.

Mas claro, essa afirmativa é cheia de “poréns”. Então é importante tratar a informação com cuidado. Por exemplo, falar em “doente mental” pode ser inapropriado em alguns casos. E ao contrário da opinião pública, defender um sistema punitivo adaptável à pessoa com transtorno psíquico não é apoiar a impunidade.

O dia 18 de maio é especialmente importante para as reflexões sobre os modelos punitivos e terapêuticos adequados às pessoas com alguma forma de desvio psiquiátrico, principalmente aqueles que implicam em reclusão.

A data marca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial – um movimento médico e social que ganhou espaço no Brasil a partir de 1978 e busca questionar a forma como as pessoas com distúrbios mentais graves são tratadas. A ideia é que o tratamento adequado ao indivíduo com uma doença mental não deveria ser, necessariamente, a internação forçada em um manicômio.

O tratamento por meio da internação em estabelecimentos dessa natureza levou a episódios tristes na nossa história. Por isso, este é um assunto a ser trabalhado com cautela.

Ainda assim, não podemos ignorar as dificuldades de adequação do doente ou deficiente mental às situações jurídico sociais.

Quando esse assunto chega ao advogado criminal, geralmente envolve a acusação de que a pessoa, portadora de algum desvio psiquiátrico tenha cometido um determinado crime. Com isso, surgem dúvidas e preocupações sobre o desenvolvimento do procedimento criminal de um réu com tais particularidades.

Entenda agora como é essa delicada relação entre a prisão e o indivíduo com “problemas mentais”.

O que é o doente mental

Utilizamos essa expressão aqui para facilitar sua busca por respostas, mas sabemos que ela, e outras como “pessoa com problema mental”, geralmente não são muito técnicas (ou adequadas). Não se preocupe: não é nossa intenção fazer qualquer tipo de julgamento por utilizá-la.

Vamos apenas esclarecer que “problema mental” não significa nada juridicamente. Talvez do ponto de vista psiquiátrico, a melhor forma de colocar isso seja “pessoa com transtorno mental”. Daí a expressão pode incluir os mais de 300 tipos de transtornos mentais catalogados na quinta e mais nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)‎.

Mas, em geral, o que motiva a curiosidade sobre o tema é a condição aguda de algum desses transtornos – e a forma como o Direito Penal trata o indivíduo nessa situação.

O que é importante para o Direito

Não é qualquer transtorno mental que interessa ao Direito. Na verdade, nem o grau de seriedade do transtorno, por si, é o aspecto mais relevante da análise que o advogado criminal faz.

Para nós, o que é importante é se o suposto autor do crime era “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

Se era inteiramente incapaz, então chamamos essa pessoa de inimputável. Aliás, diga-se de passagem, esse trecho acima é parte de um artigo do Código Penal (artigo 26) em que a Lei Penal explica a circunstância na qual o inimputável é isento de pena. Por hora, basta-nos saber que o importante para o Direito é o entendimento do sujeito sobre o caráter ilícito do fato.

É bem diferente de saber o que é importante para a medicina.  Talvez para aquela área de conhecimento, haja relevância clínica só nos desvios que retiram o indivíduo da melhor convivência social (afinal, é possível que todos nós tenhamos um pouco de alguma forma de desvio).

 “- Mas Doutor, se este artigo é sobre Direito, porque estamos falando tanto da visão que os médicos tem?

É porque tanto o advogado criminalista como os outros operadores do Direito dependem desse ponto de vista técnico para buscar a melhor aplicação da lei. É o que veremos adiante.

Como a pessoa é processada

Quando o indivíduo é denunciado  - ou antes disso, durante o inquérito – e sobre ele paira alguma dúvida sobre aquela “incapacidade de entendimento” de que falamos anteriormente, realiza-se um exame pericial sobre a pessoa.

A vida do advogado criminal seria muito mais fácil se bastasse ao acusado alegar que não tem capacidade de entender o caráter ilícito de seus atos. Mas isso não é o suficiente para que o juiz possa absolver o acusado.

É preciso que um médico perito verifique se essa incapacidade decorre de “doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado” (outro trecho do artigo 26). Por isso é tão importante a visão do psiquiatra sobre nosso problema.

Se o laudo concluir que a pessoa reúne essas duas condições (“estado mental alterado” e “incapacidade de entender o caráter ilícito de seus atos”), o Juiz do caso verificará se elas estavam reunidas no exato momento em que o crime foi cometido. Afinal, vários transtornos apresentam instabilidade e têm circunstâncias de pico. Se o indivíduo não estava instável no momento da ação ou omissão, você tem que concordar comigo, que não faz sentido diferenciá-lo de outro criminoso qualquer.

Mas se a pessoa estava, sim, nesse momento de incapacidade, então ela será considerada inimputável para o sistema jurídico. O inimputável, como o nome diz, é isento de punição; de pena! Mas se ele não pode sofrer a pena, o que fazer com esse indivíduo que cometeu o crime?

As dificuldades do sistema em lidar com o inimputável

Não vamos cometer a hipocrisia de dizer que o sistema jurídico sabe o que fazer com o preso “comum”. Ele não sabe. Enquanto não inventamos algo que pareça ser uma solução melhor que a prisão, vamos trabalhando com a ilusão de que isso funciona. Pelo menos ela tira o agente ameaçador de perto do bem jurídico ameaçado, e realiza um pouco daquele sentimento de vingança que sente a vítima e as pessoas que se solidarizam com sua situação.

Mas o fato é que, sendo ou não eficaz, o sistema penal tem que tratar o inimputável de forma diferente. Afinal, não parece muito justo condenar a pessoa que quis causar um mal, da mesma forma que o cidadão incapaz de saber o que está fazendo, não é mesmo?

Então em relação ao sentimento de vingança que mencionamos acima, não há muito problema: a vontade de se vingar é teoricamente menor contra a pessoa que não sabia o que estava fazendo.

Mas ainda resta a necessidade de tirar o agente ameaçador de perto do bem jurídico. É aí que o sistema jurídico engasga.

Alguns tipos específicos de transtornos de personalidade podem tornar o sujeito imensamente perigoso. Daí a ordem jurídica tem duas diretrizes: 1) precisa afastar esse indivíduo; 2) sem perder de vista a reprovação menor que se tem sobre ele, em razão dele não conseguir entender o caráter ilícito de suas atitudes. Não pode haver pena!

Na prática, a conciliação entre tais diretrizes acontece no momento da sentença penal.

As condenações de inimputáveis

Então o Estado se depara com esse impasse quando tem que lidar com criminosos inimputáveis: o Juiz deve absolver, mas o individuo não pode voltar para a rua, senão pode cometer outro crime. E aí?

A solução dada pelo nosso sistema penal, é determinar que o juiz pronuncie uma sentença que chamamos de “sentença absolutória imprópria”.

O acusado não vai pra cadeia. Não vai preso como as outras pessoas iriam. Ao invés de mandar para o presídio, o juiz determina a Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta deste, em outro estabelecimento adequado (art. 96 do Código Penal).

É aí que o assunto ganha tanta importância na data de hoje. Se a primeira diretriz (necessidade de afastamento do indivíduo) for sobrevalorizada em relação à segunda (tratamento especial ao doente), você transforma a internação em uma nova forma de prisão.

E na prática, as duas – prisão e internação -  já podem ter muita coisa em comum.

Imagine a dificuldade que tem o advogado criminal de explicar para a família do acusado que ele foi absolvido, mas vai ter que ficar por tempo indeterminado em uma internação? Aliás, parece até que a internação é mais severa, porque a lei fala que há um tempo mínimo de 1 a 3 anos, mas não fala em tempo máximo.

Foram os tribunais superiores que “determinaram” que o tempo máximo não poderia passar dos 30 anos.

Mas note que a possibilidade de reclusão do indivíduo por 30 anos, é uma hipótese raríssima dentre os muitos crimes do nosso sistema. E que mesmo o tempo mínimo de 1 a 3 anos de internação está muito acima da maioria das execuções penais, que antes disso, já recebem a progressão a um regime menos reclusivo.

A importância da luta antimanicomial

Por isso a importantíssima data de 18 de maio deve servir sempre para lembrarmos de que há um esforço histórico para que a relação da ordem social com o doente mental tenha o tratamento – e não o isolamento - como principal meta. E a dignidade humana como maior diretriz.

Que os procedimentos judiciais dos inimputáveis, não estejam nunca na contramão, das mais de quatro décadas de conquistas na humanização de doentes e deficientes. Afinal, errar é mesmo humano.