Impeachment para leigos

O Brasil já tem experiência com o Impeachment. Getúlio Vargas, Carlos Luz, Café Filho, Fernando Collor, Dilma Rousseff e Michel Temer sofreram o processo. Collor e Dilma chegaram a ser destituídos!

Apesar de tantas ocorrências, o advogado criminal é sempre muito consultado sobre as regras do processo. É um assunto complicado e observamos muitos “especialistas” engasgando para explicá-lo. 

Agora mesmo, observamos uma enxurrada de pedidos de Impeachment contra o Presidente Jair Bolsonaro. Com o tema voltando a ser destaque nos noticiários, é importante que mesmo as pessoas juridicamente leigas entendam o funcionamento desse instituto, que pode tirar o mandato do chefe do Poder Executivo.

Confira agora um passo a passo do processo de Impeachment.

 Antes de começar…

Alguns esclarecimentos iniciais facilitam muito a compreensão do processo de Impeachment. Em primeiro lugar, vamos sempre considerar que o procedimento está sendo conduzido para a efetiva condenação do Presidente e destituição do cargo.

Não vamos falar aqui na hipótese do processo ser interrompido ou no que pode acontecer se ocorrer essa interrupção em cada uma dessas fases.

Muitas pessoas se perdem na explicação de um procedimento jurídico, quando se ocupam de pensar no que ocorre quando uma determinada circunstância acontece, nos recursos cabíveis e nos recursos dos recursos. Pensar nos “ses” e em suas ramificações atrapalha sempre a explicação de temas complexos. Por isso vamos deixá-los de lado, por hora.

Em segundo lugar, não vamos entrar no mérito das causas do Impeachment. Esse processo decorre da suspeita de existência de um gênero particular de crimes, que chamamos de Crimes de Responsabilidade. São aqueles delitos cometidos exclusivamente através do exercício da função pública. Isso é tudo que nos basta. Discutir os elementos, requisitos e a reprovação de qualquer conduta, foge do nosso objetivo e complica ainda mais o tema.

Por fim, vamos relevar as nomenclaturas. Mesmo no meio técnico do advogado criminalista, existem muitas discussões sobre o termo mais adequado para uma ou outra fase do processo de Impeachment.

Certamente é um procedimento complicado. Vocês verão que são várias fases, várias votações e várias decisões. Por isso é comum surgirem dúvidas como: “- Isso já não foi discutido?”, “- Já não teve votação?”, “- O momento para isso não aconteceu lá atrás?”.

Esclarecer tais indagações é ainda mais difícil, se o leitor tiver também que ser apresentado às nomenclaturas jurídicas empregadas e às discussões sobre a adequação de uma ou outra. Por isso vamos afastar o rigor técnico e partir do básico para explicar as fases do Impeachment.

“O básico” do impeachment 

A palavra impeachment vem do latim “impedicare”, que significar “caçar, capturar”. Quando o impeachment acontece, o que é capturado é um mandato público. No caso, o mandato do Presidente da República.

Esse procedimento que leva o Presidente a ter seu cargo capturado chama-se, então, Processo de Impeachment.

A cassação do mandato de um Presidente deve ser excepcional. Por isso as regras são muito rígidas. Também deve ser justo, e por isso ele tem várias fases de análise e discussão. Mas, acima de tudo, deve ser o mais democrático possível, e por isso são os representantes do povo, divididos entre a Câmara dos Deputados e o Senado, que julgarão.

Então, primeira coisa: são duas fases. Uma na Câmara, que tem 513 deputados e outra no Senado, com 81 senadores.

Em cada uma, o pedido feito para se “impedicare” o mandato do Presidente vai ser analisado. Mas como a cassação é uma punição (muito severa, inclusive), os representantes do povo tem que ser minuciosos para não cometer injustiças. Antes de aplicar a sanção, eles verificam se há fundamento na acusação feita.

Essa noção de dupla análise da acusação costuma a trazer uma dificuldade de compreensão. Por isso, utilizamos uma analogia para explicar esse segundo ponto básico. Sabemos que o advogado criminal não é exatamente fã de analogias em matéria penal, mas o magistério nos permite. Usaremos então o “Conto dos Dois Reis” que nos ajuda muito na explicação de alguns temas de Direito Administrativo e Constitucional.

Uma analogia para facilitar a compreensão do processo de impeachment

O conto relata a história de dois reis irmão que governavam juntos um mesmo reino. Cada qual em sua corte, decidiam sucessivamente as demandas judiciais do povo. O rei mais novo fazia um primeiro julgamento e passava para o segundo rei, que dava a sentença final.

Mas reis não são tolos. Suas decisões são sempre tomadas com cuidado e prudência.

Então, se um súdito vinha lhe pedir punição ao fulano de tal, que havia roubado suas ovelhas, o primeiro rei levava duas fases para tomar uma decisão. Primeiro procurava saber se existiam mesmo ovelhas e se elas não estavam onde deveriam. Daí então ele verificava se o fulano apontado é mesmo o responsável pelo sumiço. Se era o caso, indicava a possibilidade de condenação e passava a para o segundo rei, que fazia as mesmas duas análises, aplicando a sentença final.

É claro que, no nosso caso, o fulano de tal é o Presidente da República e os reis são a vontade do povo distribuída entre as duas casas do Congresso Nacional: Câmara e Senado.

E na necessidade do “rei” dividir seu processo de decisão em duas fases, está o nosso segundo ponto básico: em cada um das casas do Congresso há um primeiro momento em que se verifica se a denúncia tem algum fundamento (se existiam ovelhas e se elas não estão onde deveriam); e um segundo momento em que se decide se a condenação é devida.

Entender que o impeachment é discutido em duas casas e que em cada uma são feitas duas análises, facilita imensamente a compreensão que buscamos.

Daí, resta-nos descrever os passos desse procedimento que começa na Câmara dos Deputados e termina no Senado.

Na Câmara dos Deputados

Aqui o processo tem início por meio de um pedido apresentado por qualquer cidadão. Vamos chamar esse pedido de Denúncia.

Denúncia

A Denúncia, assinada com firma reconhecida, é feita perante a Câmara dos Deputados.  Os fatos narrados são acompanhados de provas e testemunhas. E tudo é levado ao conhecimento da chamada “Mesa da Câmara”: conjunto de deputados responsáveis pela direção dos trabalhos legislativos e dos serviços administrativos da casa.

A Mesa da Câmara avalia então a plausibilidade do pedido.

Mas calma. Neste momento a Câmara ainda não está verificando se as “ovelhas” existem. A avaliação sobre a plausibilidade vem antes disso. Em nossa analogia com o “Conto dos Dois Reis”, vamos dizer que neste momento o rei apenas confere se o súdito é quem ele diz ser; se mora mesmo no Reino; e se suas acusações não são delírios.

Mas se a Denúncia não parece um absurdo total, a Mesa da Câmara recebe a Denúncia e o Presidente da Câmara a lê em plenário. Lê também o ato que cria uma Comissão Especial para analisar essa Denúncia e por fim manda citar o Presidente da República.

Comissão Especial

Essa comissão é um grupo de Deputados composto por 65 integrantes. Diz-se especial porque ela não existia antes. É reunida especialmente para tratar do pedido de impeachment. Ela também é “mista”, por contar com a participação de todos partidos, na proporção que eles ocupam a Câmara.

Intimado, o Presidente da República tem 10 sessões (reuniões da Câmara) para se manifestar sobre a Denúncia. Daí a Comissão Especial vota, em 5 dias, por maioria simples, um relatório final no qual opina admite ou não a denúncia. Essa é a primeira fase da qual falamos. 48h depois do voto, o pedido de Impeachment é incluído na pauta do dia seguinte.

Votação na câmara

A câmara faz então uma segunda votação. Desta vez em Plenário, com voto aberto e por maioria de 2/3 a favor (são 342 votos para aprovar).

Com essa decisão positiva, que vamos considerar uma “autorização” para a segunda análise (lembrem-se do conto), o Processo é encaminhado ao Senado (nosso segundo rei).

 No Senado

A segunda fase nos tomará menos tempo para explicar: muita coisa se assemelha à anterior. Novamente aqui a Denúncia é lida em Plenário e instaura-se uma comissão.

Nova comissão

Desta vez com 42 senadores (21 titulares e 21 suplentes), ela elabora um novo parecer sobre admissibilidade em 10 dias. Defesa e denunciantes são ouvidos antes da votação, que ocorre em plenário com por maioria simples.

O afastamento do Presidente

Se o pedido de impeachment for admitido - como o será, no nosso exemplo - o Presidente da República é afastado. Esse afastamento dura 180 dias, durante os quais a chefia do executivo será exercida pelo Vice Presidente. Ao fim do prazo, o Presidente volta ao cargo, mas o Processo de Impeachment continua correndo.

Defesa

Da decisão de afastamento, a defesa do Presidente tem 10 dias para se manifestar. Aqui ocorre a verdadeira instrução do Processo de Impeachment, que é a fase em que se analisam provas, documentos e se ouve testemunhas. Ela não tem prazo para terminar, mas seu último ato será a audiência do Presidente. Após, a Comissão especial da um novo parecer através do qual opina se o mandato do Presidente vai mesmo ser levado à última votação. Chamamos isso de pronúncia.

Vota-se a pronúncia por maioria simples, mas com presença da maioria absoluta (41 senadores). Sendo positiva, o presidente pode ainda recorrer em 5 dias.

Última votação

Havendo pronúncia, denunciantes e defesa terão prazos sucessivos para oferecer acusação e contestar. Daí os autos são remetidos ao presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele marcará a data da votação que, aliás, será uma sessão presidida por ele.

A última votação, no Senado precisa de uma aprovação de 2/3 dos senadores. Ou seja, 54 dos 81, por voto nominal.

Se esse número é alcançado, ocorre o Impeachment: o mandato do Presidente da República é definitivamente cassado.

Repercussões do impeachment

Com o resultado dessa última votação, o Presidente é destituído do cargo e Vice Presidente é quem assume pelo restante do tempo que corresponderia ao mandato.

Há também a previsão de que o Presidente da República que perdeu o mandato não possa ocupar novamente um cargo público por oito anos. Contudo, essa consequência pode ser afastada pelo Congresso.

O advogado criminal “sofre” para explicar esse disparate. No caso, a melhor justificativa parece ser a insensata opção do legislador em autorizar que executores de uma função política (membros do Congresso), fiquem a cargo de uma análise jurídica (adequação jurídica da denúncia). Em termos assim, não tem mesmo como alcançar um desfecho justo.