Reflexos do pacote anticrime para os crimes administrativos

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A Lei 13.964, sancionada em 24 de dezembro de 2019, constitui o famigerado “Pacote Anticrime” que vem ocupado a mídia brasileira nos últimos meses.


Afora as discussões sobre adequação da lei às intenções originais de seus idealizadores, há mudanças substanciais a diversos institutos jurídicos.


Trabalharemos hoje especificamente com as alterações promovidas por esta nova legislação à criminalidade promovida contra a administração pública.

1 . Nova regra para arquivamento


O “Pacote Anticrime” remodela a regra de arquivamento do inquérito policial do art. 28 do CPP.
Segundo a nova legislação, se o magistrado determina o arquivamento no inquérito, o Ministério Público encaminha os autos à instância de revisão ministerial para homologação.


Não entrando no mérito sobre a discricionariedade - ou não - desta homologação, o §2º do Art. 28 prevê uma legitimidade revisional específica. É que no caso de crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, o chefe do órgão de Representação Judicial desses entes poderá provocar a revisão do arquivamento.


Com isso, crimes contra administração pública, que essencialmente atacam bens jurídicos dos entes federativos, deverão passar a ter uma nova instância de discussão sobre a matéria de investigada. Afinal, a gestão jurídica mais prudente dos órgãos públicos poderá sugerir, na maior parte dos casos, a conveniência do pedido de revisão.

2. Proteção ao informante

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A figura do informante aparece como um colaborador da justiça que goza de proteção especial do “Pacote Anticrime”. A lei determina que os antes federativos e da administração indireta mantenham unidade de ouvidoria ou correição para permitir a comunicação de crimes, ou ilícitos de qualquer natureza, contra a administração pública. Também determina uma série de medidas para proteger o informante e prevenir a retaliação pelas informações prestadas.


É possível (e provável) que esse expediente normativo traga dificuldades operacionais nas ações penais por crimes contra a administração pública. Em especial, quanto ao exercício do contraditório e da produção de provas. Afinal, os limites acusatórios são sempre tão claros quanto o acesso à informação. E se o informante é de qualquer forma “blindado”, por óbvio o acesso à perspectiva acusatória, pelo acusado, é menor.


Isso gera um interesse particular do Informante que foge à mera vontade de contribuir com a administração pública. Retira-o da posição de colaborador desinteressado, para transformá-lo em verdadeiro interessado na condução das demandas persecutórias. Incentiva-se a exploração do potencial para criação de narrativas maliciosas ou para a percepção distorcida da realidade.


Essa situação pode ainda ser agravada pela possibilidade de recompensa ao Informante de até 5% do valor recuperado. E se por um lado lhe são conferidas garantias de sigilo e contra o revanchismo, por outro tolhe-se aos que são imputados irregularidades, o direito à defesa que deriva do conhecimento da identidade do informante. A revelação da identidade torna-se a exceção e o ônus da excepcionalidade transfere-se ao imputado sobre as balizas do interesse público ou do esclarecimento dos fatos.


Além disso, ao que aprioristicamente se depreende do texto legal, o dever de demonstrar que a informação é falsa é transferida ao suposto autor das irregularidades, o que, a nosso ver, transgrede os limites da constitucionalidade.


Com essas mudanças, é possível prever novas dificuldades práticas para o exercício efetivo a defesa daqueles que sejam persecutidos juridicamente por crimes contra a administração pública.

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3. Alteração da Natureza da Ação Penal no Crime de Estelionato

O “Pacote Anticrime” altera a natureza da Ação Penal para o Crime de Estelionato. Passa então a ser processada mediante representação da vítima.


Abre-se, contudo, exceção para algumas vítimas especialmente vulneráveis. Neste rol, que inclui o idoso maior de 70 anos, o incapaz, o deficiente mental, a criança ou adolescente e a administração pública a natureza da ação continua como pública incondicionada.


Dai concluir-se que, a partir do “Pacote Anticrime”, a regra passa a ser de que o Estelionato é processado por Ação Penal Pública Condicionada, mas enquanto crime contra Administração Pública, permanecerá com a natureza de Ação Penal Pública Incondicionada.

4. Criação do Acordo de Não Persecução Cível


Outra inovação do “Pacote Anticrime” é a possibilidade de Acordo de Não Persecução Cível. É um adendo que se faz à Lei de Improbidade Administrativa, não se tratando de um instituto propriamente penal.


Todavia, pode abrir maiores opções de negociação e barganha com os órgãos persecutórios na medida que permite a esses oferecerem “mais”, em troca da colaboração daqueles que por ventura se sujeitem aos procedimentos investigativos e punitivos relacionados a este âmbito jurídico.

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Para a “mesa” de negociações, o Ministério Público, por exemplo, poderá incluir uma proposta de não persecução cível em contrapartida àquelas condições do art. 28-A. Pode comprometer o poder público a abster-se de aplicar sanções pecuniárias através da esfera cível e não apenas penal, como antes. Isso permite, aos investigados (e seus defensores), fazer uma projeção mais segura das consequências jurídicas que podem se abater sobre seu patrimônio em decorrência dos procedimentos persecutórios.
Na esfera dos crimes contra administração pública, esta inovação que se agrega à Lei de Improbidade certamente traz novas perspectivas de defesa.

Conclusão


É certamente difícil fazer previsões sobre todos os possíveis reflexos do Pacote Anticrime na esfera de processamento dos crimes administrativos.


Algumas alterações legislativas, como as discutidas acima, parecem-nos mais evidentes. Podem, contudo, sofrer resistência na consolidação prática e ficarem aquém do que vislumbravam seus idealizadores. É o que se observa em institutos ainda promissores do Ordenamento Pátrio, como a mediação.


Podem também ganhar oposição semelhante à que sofre o juiz de garantias e levou ao STF suspender sua implementação.


Mas qualquer que seja a recepção que as mudanças do Pacote Anticrime receber do sistema político jurídico brasileiro, a consequência primeira e inafastável da sua promulgação é abertura de um espaço de reflexão sobre institutos consagrados do Direito Penal e Processual Penal.