Descomplicando o Foro por Prerrogativa

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Não é de hoje que o tema Foro por Prerrogativa (ou Foro por Prerrogativa de Função, Prerrogativa de Foro ou Foro Privilegiado por Prerrogativa de Função) ganha as manchetes do país. Mas às vezes as notícias e a complexidade dos casos evoluem com tamanha velocidade, que não é raro que nós, Advogados Criminais, sejamos indagados por pessoas que não compreenderam sequer o básico do assunto.

Para permitir que essas pessoas posicionarem-se mais conscientemente sobre a questão, no texto de hoje vamos explicar o básico do Foro por Prerrogativa e esclarecer o ponto central das controvérsias mais atuais.

O significado da expressão Foro por Prerrogativa

Parece que a própria expressão “Foro por Prerrogativa” atrasa um pouco a compreensão de seu significado. Para começar, não são palavras do nosso cotidiano. Além disso, a pessoa também precisa de um pouco de concentração para refletir sobre essa conjunção de termos. Ai, quando volta à realidade, o assunto, já está lá na frente.

Então vamos entender o significado.

Sempre que ouvir a palavra foro, pense em um lugar de discussão. A mesa de jantar é o foro da família, enquanto a mesa do bar pode ser o foro dos amigos. É onde os assuntos de cada um dos círculos sociais são discutidos.

Quando esse círculo social é o poder judiciário, teremos o foro de algum órgão da justiça, como o do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Estaduais ou até do Fórum da Cidade. Vai depender do assunto que está sendo discutido ou de quem está sendo protagonista dele. O que nos leva à segunda parte da expressão: prerrogativas.

No contexto que estamos tratando, prerrogativa pode ser entendida como sinônimo de “garantia”. Ou melhor, uma garantia que a pessoa tem em razão de uma profissão que exerce ou condição que tem. Um exemplo clássico é a “cela especial” para quem tem diploma de curso superior.

Essa previsão do artigo 295, inciso VII do Código de Processo Penal, não tem nada a ver com o “foro”, mas serve como exemplo de uma garantia (cela especial, caso esteja preso antes da condenação) de quem tem uma condição privilegiada (diploma de curso superior).

Assim, juntando os dois, temos que Foro por Prerrogativa é “um lugar de discussão” dado como “garantia” a uma condição especial que alguém tenha.

E aqui uma dica: Esse “lugar de discussão” diferenciado é muitas vezes considerado um privilégio, principalmente nos últimos anos. Por isso, a expressão “foro privilegiado” atualmente é considerada um sinônimo do foro por prerrogativa de função, quando utilizado no contexto das garantias de uma dada função pública.

O mais importante, é entender que, para nossas discussões, essa função pública refere-se ao cargo eletivo de alguém que cometeu um crime em razão dessa função. E no julgamento desse crime, é que entra o foro privilegiado.

Por que o Foro por Prerrogativa foi criado

Essa espécie de foro privilegiado tem raízes históricas profundas. Está associada ao exercício e divisão do poder do Estado.

No Brasil, ao que nos interessa, há uma “divisão” do Poder Público entre estados, municípios e federação. Entre eles, é fácil imaginar que os agentes políticos de uma esfera (federal, por exemplo), não queiram ser julgados por juízes de outra esfera (estadual), especialmente quando se trata do representante de uma esfera mais ampla. O lugar de discussão, que no caso do judiciário é o lugar de julgamento, é importante para a harmonização de poderes e legitimação das decisões.

Então a ideia original era afastar noções que soavam absurdas, do ponto de vista do jogo de poderes. Como por exemplo a de um juiz da menor e mais remota cidade do interior do país que mandasse prender um senador que representava as vontades de milhões de brasileiros.

As justificativas de um Foro Privilegiado

Posteriormente esse modelo foro privilegiado veio a ser justificado por uma série de proposições como “melhor aparelhamento das instâncias superiores do judiciário”; “maior capacidade de colheita de provas da esfera mais próxima ao ocupante do cargo com prerrogativa”; e principalmente a “menor possibilidade de influência política sobre os postos mais altos do poder judiciário”.

Todas são justificativas legítimas e plausíveis. Não escondem, contudo, a relação dessa garantia com o jogo de poderes que se estabelece entre as esferas institucionais. Aliás, algumas dessas proposições tem sido contestadas nos últimos tempos, principalmente nas pautas de combate à corrupção.

Isso pode ser o indicativo de que o “tiro tenha saído pela culatra”, no que diz respeito à utilidade, da prerrogativa de foro, para impedir a influência política sobre as instâncias superiores do judiciário.

Independentemente disso, vale registrar que foram justificativas com estas, que serviram a consolidar a distribuição de competências que observamos em nossa Constituição Federal.

O Foro por Prerrogativa e o fim do mandato eletivo

Como muitas coisas no Direito, o passar do tempo trouxe complexidade a essa questão. Muitas situações que surgiram tomaram, o tempo do Advogado Criminal, dos Juízes e dos operadores do Direito, para que o Foro por Prerrogativa continuasse a ser aplicado de forma justa e respeitando suas diretrizes.

Para que se tenha uma breve noção de como o assunto pode se tornar complexo, imagine que um cidadão é eleito Senador. Pelo que já aprendemos, se esse Senador comete um crime, seu “lugar de discussão” será um órgão do judiciário determinado - na Constituição Federal -  pelo seu cargo de Senador. No caso, o crime seria julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Mas agora digamos que, antes do fim do processo, esse Senador perde o mandato. Seu julgamento deveria passar para aquele juiz de primeira instância que lida com pessoas que não tem mandatos políticos? Ou deve prevalecer o foro da função que ele exercia no momento em que cometeu o crime?

E se esse processo fosse encaminhado para a primeira instância, mas entre o julgamento e o recurso, esse cidadão fosse mais uma vez eleito, mas dessa vez para o cargo de deputado estadual? A competência mudaria novamente? As respostas corretas a todas essas questões variaram muito ao longo dos anos, e traçar as repercussões dessas mudanças é assunto de vários livros de Processo Penal.

A questão ganha complexidade

Soma-se ainda a situações caóticas como esta, uma enxurrada de leis municipais e estaduais, que, ao longo dos anos, criaram um mundo de variações e subdivisões das normas de foro privilegiado. Muitas delas consideradas inaplicáveis, inconstitucionais ou mesmo revogadas em meio a processos já conturbados.

A lei 10.628/2002 possivelmente foi a mais questionada delas. Concedia foro privilegiado, ainda que o inquérito ou a ação judicial fossem iniciados APÓS a cessação do exercício da função pública. Exatamente o que foi sumulado pela Súmula 394 do STF. Esse entendimento acerca do foro privilegiado, caiu por terra em 2012, com a ADI 2797.

Mas por um sem número de vezes, o judiciário teve que se debruçar sobre a questão, tentando conjugar todas as variantes que se multiplicavam com o passar dos anos.

Tudo, para, por vezes, um processo chegar às instâncias superiores e receber uma interpretação diferente da que prevalecia até então. Em certo episódios, o trâmite processual foi tão demorado, que a composição da corte se alterou completamente e com ela, o entendimento majoritário sobre o foro privilegiado.

Felizmente a atualidade e as reformas processuais implementadas permitem uma troca mais rápida de informações e uma uniformização mais sistêmica de posicionamentos jurisprudenciais. Isso significa que, nos últimos anos, os órgãos do poder judiciário, nos diversos graus e esferas, têm seguido uma mesma orientação vigente.

O entendimento atual do tema

Falando de uma forma geral e abstrata, atualmente o que vale para o Foro por Prerrogativa é o seguinte: o processo acompanha a pessoa, ela perdendo ou ganhando a prerrogativa.

Há apenas uma ressalva: quando, por exemplo, o indivíduo está sendo julgado no STF e é intimado para apresentar Alegações Finais, se ele abrir mão do mandato, ainda assim será processado até o fim pelo Supremo Tribunal.

A intimação para as Alegações passa, então, a ser um marco processual de determinação do foro. Visa mitigar a estratégia protelatória daquele que renuncia ao cargo quando se vê prestes a sofrer uma condenação.

Essa é a interpretação do Supremo Tribunal Federal que vale desde o julgamento da Ação Penal 937, em maio de 2018. Como dito, ela tem recebido forte adesão dos demais órgãos do judiciário, mas ocasionalmente surgem posicionamentos explicitamente discordantes.

 Ao que revelam os casos mais notórios, são situações especialmente provocadas pelo aparecimento de novos agentes determinantes do contexto político, ou por pressões ideológicas institucionalizadas.

O jogo de poder tem muitas peças…