A Lei Maria da Penha pode ser aplicada nos casos em que o homem é vítima de violência doméstica?

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A resposta é negativa. Mas isto não significa que o homem, independentemente de orientação sexual ou identidade de gênero, vítima de violência doméstica1[1], esteja desamparado de proteção. Explicaremos.

O artigo inaugural da Lei Maria da Penha (11.343/06) determina que a Lei crie mecanismo para coibir e prevenir violência doméstica e familiar contra a mulher e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

O texto da Lei é claro: o alcance da proteção se restringe às mulheres.

A Lei não foi isenta de críticas. Alguns juristas defendiam que, por assegurar proteção especial e diferenciada às mulheres, violaria o princípio da igualdade, sob o argumento de que iguais em condições semelhantes não poderiam gozar de proteção legal diferenciada.

No entanto, o argumento foi fortemente combatido no mundo jurídico. A Lei Maria da Penha foi criada justamente com o objetivo de reduzir as desigualdades de gênero no âmbito familiar. A opressão de gênero presente em nossa sociedade faz com que as mulheres sofram muito mais intensamente violências físicas, sexuais, morais, psicológicas e patrimoniais. Assim, não haveria qualquer violação ao princípio da igualdade, muito pelo contrário: a lei garantiria a igualdade material na medida em que os desiguais receberiam tratamento diferenciado na medida de sua desigualdade.

A Lei, portanto, reconhecida como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, não tem o escopo de coibir e prevenir violência doméstica e familiar contra o homem. Cumpre destacar, como indica o próprio Conselho Nacional de Justiça, que a Lei não faz distinção de orientação sexual e nem identidade de gênero. Portanto, pode ser empregada normalmente nos casos de mulher agredida por companheira, assim como para transexuais que se identificam como mulheres[2].

Afastada a questão inicial, nos resta a pergunta “como pode o homem vítima de violência doméstica recorrer à proteção legal”?

Em primeiro lugar, é importante deixar bem claro que a Constituição Federal garante o direito do cidadão de acionar o poder judiciário em busca de proteção contra lesão ou ameaça a direito. Ou seja, o fato de a Lei Maria da Penha não assegurar proteção aos homens nos casos de violência doméstica não significa que inexiste proteção, pois a própria Constituição Federal a garante.

Desta maneira, o homem que se sentir lesado pode recorrer às delegacias, ou, por meio de advogado, promover ação perante o juizado especial penal no caso de crimes com menor potencial ofensivo (calúnia, ameaça, lesão corporal leve, dentre outros), além de poder requerer indenização por dano moral ou material no âmbito cível.

Nos casos de condutas mais graves, em geral quem poderá promover a ação penal será o Ministério Público. Assim, incumbe à vítima noticiar o fato, para que, após a investigação, possa ser promovida a denúncia pelo órgão público.

A aplicação das medidas protetivas de urgência

Um grande avanço trazido pela Lei Maria da Penha foram as medidas protetivas de urgência. Tratam-se de medidas que obrigam o agressor ou auxiliam a vítima, visando à proteção e cessação da violência. Já debatemos o tema em outro artigo no blog, então dispensaremos, neste texto, o aprofundamento da questão.

Embora homens não possam figurar como vítima de violência doméstica para fins de aplicação da Lei Maria da Penha, alguns juízes entendem ser possível aplicar, por analogia, as medidas protetivas de urgência em favor de pessoas do sexo masculino, visando à garantia da integridade física, honra e/ou patrimônio da vítima.

Todavia, tal esforço argumentativo para extensão da aplicação da Lei se mostra desnecessário.

O Código de Processo Penal prevê, no artigo 319, medidas cautelares diversas da prisão. Estas medidas possuem as seguintes finalidades principais: garantia da aplicação da lei penal, assegurar a investigação contra atuação do investigado e garantia da ordem pública.

As medidas cautelares podem obter os mesmos resultados das medidas protetivas de urgência, como, por exemplo: proibição de manter contato com pessoa determinada (medida cautelar que, inclusive, foi estendida da Lei Maria da Penha para o Código de Processo Penal), proibição de acesso ou frequência a determinados locais, etc.

Conclui-se que:

1)     A Lei Maria da Penha é explícita quanto ao seu âmbito de proteção, que se restringe às mulheres;

2)     Apesar disso, alguns juízes aplicam medidas protetivas de urgência, por analogia, para homens vítimas de violência doméstica;

3)     Mesmo que não fossem aplicadas por analogia nestes casos, as medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal são perfeitamente adequadas para a proteção da vítima do sexo masculino, mostrando-se desnecessário recorrer à Lei Maria da Penha para a proteção dos homens.

[1] Entendida por ação ou omissão, no âmbito de relações domésticas, familiares ou de íntimo afeto que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

[2] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83078-cnj-servico-para-quem-a-lei-maria-da-penha-pode-ser-aplicada.Acesso em: 25 de Agosto de 2019